quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Lucy é sobre inteligência



Antes de escrever sobre Lucy, eu preciso dizer uma coisa urgente (Ah, e SPOILERS em todo o texto):

Parem de ficar resmungando que a teoria do “usamos apenas 10% do nosso cérebro” é falsa! Não vejo uma pessoa sequer reclamando que uma picada de aranha radioativa na verdade daria câncer em vez de superpoderes ou de Godzilla não ser possível porque a gravidade da Terra não permitiria que uma criatura com aquele tamanho realmente exista.

Você sabe que o mito é falso, eu sei também e, quer saber? Todo mundo também sabe que é mentira isso. Até mesmo os próprios produtores do filme sabem que é mentira (vou falar mais tarde sobre isso). Para os curiosos de plantão, esse mito ficou popular quando picaretas ilusionistas como Uri Geller usavam essa desculpa para justificar as ilusões que eles faziam.

Ficções científicas são histórias onde se pegam uma premissa falsa e/ou que poderia ser real e criar todo o enredo em torno dessa premissa. É isso que torna ficção científica uma FICÇÃO.

Tirando esse elefante da sala, já posso dizer que Lucy é um filme muito mais inteligente do que você imagina ser; não pelas informações pseudocientíficas contidas nela, mas em sua temática. Lucy, na verdade, é sobre inteligência. Como um filme de ficção científica, Lucy também é uma subversão as histórias de superheróis.

Para início de conversa, o próprio título tem um motivo para estar lá: nome dado pela comunidade científica a um fóssil de um primata que, supostamente, seria o ancestral direto dos seres humanos de hoje. Apenas com essa informação já se pode deduzir que, só por não usar, por exemplo, “Eva” para essa situação mostra o quanto esse filme tem a tendência a glorificar os estudos científicos das escritas bíblicas, o que reforça o fato de a protagonista ter esse nome e ganhar superpoderes seria mais uma coincidência do que predestinação.

Outro fator importante está intimamente associado com a identidade Nerd. Muitas das pessoas que autointitulam nerds tem uma sensação de serem marginalizados pela sociedade por serem diferentes inteligentes. Professores e cientistas são pessimamente remunerados e tem muita pouca visibilidade enquanto atletas de futebol, basquete e outros esportes ganham fortunas e são idolatrados. Padres e bispos ganham milhões graças a ignorância da população em geral. Exemplos temos aos montes.

Ironicamente, são nas próprias histórias de super-heróis que esses estereótipos estão mais evidentes. A grande maioria dos super-heróis tem como sua principal virtude os dotes físicos e, quando são inteligentes, seus planos precisam de um mínimo de destreza física para serem executados; e em grande maioria das vezes os seus vilões têm como principal atributo a inteligência: os famosos “cientistas malucos”.

E Lucy é uma personagem superpoderosa exatamente porque é inteligente. A sua inteligência é a fonte de seus superpoderes e, por isso, que o cérebro é muito citado no filme. Essa mensagem se torna ainda mais evidente quando percebemos que seus vilões sempre acabam optando pelas alternativas mais previsíveis e idiotas para deter ela. Ninguém pensou em usar familiar como refém e/ou matar como retaliação e muito menos em explodir o local sem aviso prévio. Ou seja, o filme faz uma dicotomia Inteligência/Bem e Ignorância/Mal e, só por isso, já é digno de elogios.

A dicotomia foi demonstrado de uma forma explícita no filme quando ela decidiu armazenar todo seu conhecimento em um supercomputador e, quando foi questionada sobre a opção (leia-se: se os humanos não seriam gananciosos, insensíveis ou indignos do conhecimento a ser recebido), ela responde que é a ignorância que torna as pessoas assim.

Um outro estereótipo que cai por terra no filme é de que seres muito inteligentes seriam insensíveis, a ponto de serem facilmente vilanizáveis. Já escrevi antes que o termo Nerd foi popularizado em alguns seriados na década de 70 e serviam como bullying para pessoas que tinham algum grau de autismo, cujos sintomas do transtorno também envolviam dificuldade de socialização. No filme, a primeiríssima coisa que ela faz (além de fugir do cativeiro, óbvio) foi ligar para a mãe dela dizendo o quanto ela a ama, explicando de uma maneira extremamente bizarra para o público que as pessoas mais inteligentes são exatamente aquelas que são mais sentimentais.

Owwwwwwwwwwnnnnnnn...

Ah, e lembra quando o policial, impressionado com os feitos dela, disse que ele não se via como útil para Lucy e ela respondeu beijando-o e dizendo “Um lembrete”. Pois é. O “lembrete” dela é de que ele é apenas um interesse romântico dela. A questão é que, na imensa maioria das histórias de super-heróis, as namoradas/amantes do super-herói só está na história para servir de troféu interesse romântico para o herói. Percebe-se que quase nunca a namorada serve para ajudar o herói em sua aventura. Muito pelo contrário: na maioria das vezes o vilão sequestra a mocinha, servindo como um ato de intimidação para o super-herói em questão. Aqui, no seu maior ato de subversão das histórias de super-herói, o filme “apenas” inverte os gêneros para mostrar isso ao público.

Vocês poderiam até dizer que esse “lembrete” seria que ela poderia deduzir que no futuro iria precisar de uma cobertura policial, mas eu digo que não é plausível porque ela poderia muito bem ser multitarefada (dois computadores, lembra?) e, principalmente, ela não aprendeu a viajar no tempo para saber o futuro. Ainda. Como eu sei que ela ainda não sabia viajar no tempo a essa altura? Simples: antes de criar o supercomputador onde ela colocaria todo o seu conhecimento, ela explicou para os cientistas de lá que o tempo é a única medida absoluta e a matéria estava apenas “encenando” nesse palco.

Para a linguagem cinematográfica, o filme disse que o recurso do tempo será utilizado, já que como ela aprendeu a fazer literalmente qualquer coisa naquele momento, a próxima etapa lógica seria fazer qualquer coisa em outros momentos. Para a filosofia, ela praticamente citou Immanuel Kant. O problema de usar a filosofia de “tempo-espaço como um palco de teatro” é a de que já foi desmentido pela Teoria da Relatividade Geral de Einstein, onde na verdade o tempo seria uma medida relativa (a luz seria a única medida absoluta) e é dependente da matéria; ou seja, sem matéria, não existiria tempo e não o contrário.

E você achando que o “10% do cérebro” fosse o único mito falso do filme... Tsc tsc...

E então, ela viaja no tempo em uma sequência a la Terrence Malick para, em segida, alcançar os 100% do potencial do cérebro. E o que acontece? Ela se torna onisciente, onipresente (a ponto de não precisar de um corpo) e onipotente (podendo manipular qualquer coisa). Ela se torna Deus.

E a grande moral dessa história é de que, com o poder da mente tudo é possível; o filme apenas apresentou essa moral da forma mais literal possível. E é por isso que o filme precisou se embasar no mito falso dos “10% do cérebro”.

8 comentários:

  1. Prezado Igor,
    Incrível sua descrição do filme.
    Em verdade, ao contrário de ser um spoiler, acredito que eu teria sido bem mais atencioso e detalhista ao ver o filme, se tivesse lido sua crítica antes.
    Impressionante!

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    1. Muito Obrigado,

      Estou pensando em fazer algo parecido com "João e Maria: Caçadores de Bruxas" algum dia desses...

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  2. Excelente explanação, Igor!
    Parabéns!

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  3. Excelente explanação, Igor!
    Parabéns!

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  4. "Cineasta Luc Besson é acusado de estupro por atriz na França"

    https://g1.globo.com/pop-arte/cinema/noticia/diretor-luc-besson-e-acusado-de-estupro-por-atriz-na-franca.ghtml

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  5. O que há por de trás desses progressistas que fazem discurso de empoderamento, mas são uns sexistas.

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  6. Mas você pode ser um cara progressivo e ainda estuprar mulheres, aparentemente.

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  7. "Luc Besson acusado de agressão sexual por várias mulheres"

    https://www.jn.pt/pessoas/interior/luc-besson-acusado-de-agressao-sexual-por-varias-mulheres-9574099.html

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